Anne Valerie Ter se sentou no banquinho preto no porão da casa de sua professora de piano, com a voz calorosa de sua mãe a encorajando enquanto ela pousava os dedos sobre as teclas para começar o Concerto para Piano nº 2 de Rachmaninoff.
“Vamos lá, você precisa praticar mais”, ela ouviu sua mãe, Olesya Taylor, dizer.
A jovem de 14 anos tinha ado os últimos três meses aperfeiçoando a peça - cada movimento, cada trinado, cada staccato. Ela queria apresentá-la em uma competição de concertos que iria acontecer dali a duas semanas. Taylor e Olivia Ter, a irmã mais nova de Anne Valerie, estariam na plateia, assistindo, orgulhosas.
Mas, naquele dia de janeiro, as duas só existiam na sua mente.

Olesya Taylor estava morta. Olivia, 12 anos, também. As autoridades ainda não haviam confirmado, mas Anne Valerie sabia, no fundo, que elas não tinham sobrevivido ao acidente do voo 5342 da American Eagle com um helicóptero do Exército americano, perto do Aeroporto Nacional Reagan, na noite anterior.
A sinfonia de sua adolescência - as conversas no carro com a mãe, a lâmina dos patins da irmã, patinadora talentosa e promissora, raspando o gelo, os sussurros de senhas secretas para entrar nos quartos da casa da família Ter - tudo acabou de repente, às 20h48 do dia 29 de janeiro.
Anne Valerie pressionou as teclas, Rachmaninoff observando de um retrato em preto e branco na parede. Os martelos desceram dentro do piano, e o som emanou do instrumento.
Mas era algo sem vida, acordes ocos e tristes. Sua habilidade artística, zelosa e encorpada, não estava ali.
Anna Balakerskaia, professora de Anne Valerie, mais tarde se lembrou de ter indagado sobre a competição.
“Você vai conseguir?”, ela perguntou a Anne Valerie, AV para os íntimos.
“Eu quero muito”, ela disse à professora. “Minha mãe queria muito que eu ganhasse”.
Então elas se prepararam para vencer.
Primeiro movimento: Um piano minúsculo
Muitos no mundo da música clássica sabem que o Segundo Concerto para Piano de Sergei Rachmaninoff é particularmente desafiador. O que poucos sabem é que o compositor terminou de escrever a peça em 1901, depois de um período de profunda depressão, e a dedicou a seu terapeuta, por ter emergido da escuridão de volta à luz.
Andrew Ter, pai de AV, se perguntava o que seria necessário para trazer a filha de volta à luz. Ele e a esposa, Olesya, se conheceram quando trabalhavam juntos numa pequena empresa de consultoria de TI no norte da Virgínia, logo depois de chegarem da Rússia, em 1998.
Eles construíram uma vida juntos em Alexandria, Virgínia. Agora, depois do acidente, Ter disse que pensava em AV e em como ela seguiria adiante sem a mãe e a irmã.

Ele pensou na vida dela, nas próximas etapas - consultas com o ortodontista e aulas na escola. Então lhe ocorreu um pensamento realmente terrível: será que ela voltaria a tocar piano?
Para AV, o piano era uma extensão de si mesma, desde a primeira vez em que viu o instrumento, com 1 ano de idade.
Taylor a inscrevera para uma sessão de fotos infantil. O estúdio fotográfico contava com uma série de pequenos órios para as crianças brincarem. Um deles era um piano minúsculo. AV ficou instantaneamente fascinada.
“Cheguei perto do piano e comecei a bater nas teclas”, disse ela.
Aos 4 anos, ela já estava fazendo aulas. Aos 5, competindo e vencendo. Aos 7, praticava de três a quatro horas por dia e tocava com orquestras.
As tardes eram preenchidas com instrutores fazendo críticas sobre dinâmicas e fraseados. As noites eram pontuadas por escalas e técnicas de pedal. Os fins de semana giravam em torno de viagens pela Interestadual 95, saindo da casa da família no norte da Virgínia para estudar no prestigiado conservatório de música do Instituto Peabody, em Baltimore.
“Ninguém me pressionou nem nada”, disse AV. “A paixão simplesmente cresceu”.
Ela brilhava com grandes sonhos de se apresentar com a Orquestra Sinfônica Nacional ou ser atração no Carnegie Hall.
Sua musicalidade aproximou a família. Taylor, que estudara música antes de se tornar profissional da saúde, adorava ajudar a filha a selecionar as peças para tocar e escolher os trajes para os recitais.
“Ela se dedicava muito”, disse Andrew Ter.
Olivia tinha se acostumado tanto com os sons do piano em casa que não conseguia dormir sem eles.
“Não consigo dormir sem você tocando”, ela repreendeu AV certa vez, numa noite em que a irmã mais velha ousara pular as horas de estudo.
Enquanto crescia, Olivia também se tornava uma competidora amigável.
“Ela via a irmã mais velha ser a primeira, a melhor, alcançar todas as conquistas e ganhar todos prêmios, e tentava acompanhar”, disse Andrew Ter. “Ela queria ter uma prateleira cheia de medalhas, como a irmã mais velha”.
Segundo movimento: Seguindo em frente
Na semana seguinte ao acidente, a estrutura virou uma religião na casa dos Ter, uma forma de evitar que se deixassem levar pelo turbilhão de tudo o que a tragédia tinha arrancado de suas vidas.
O plano: seguir em frente.
Andrew Ter assumiu o projeto de reformar o piso do porão, que estava adiado havia quinze anos. Seu irmão, Nerses, que tinha vindo de avião de uma parte da Ucrânia ocupada pela Rússia, ajudou na empreitada.
AV voltou às aulas: química, história dos Estados Unidos, matemática. Estava avançada em relação à idade. A escola era toda online, para sobrar mais tempo para o piano.
Na ausência da mãe, um grupo dedicado de amigos da família se revezava para levar a adolescente pela região de Washington, D.C. e nas idas e voltas de Baltimore nos fins de semana, para aulas de música e tênis.
No tempo livre, ela saía para tomar chá de bolha com os amigos e se distraía com longas conversas ao telefone.
Mas, acima de tudo, ela tentava seguir em frente.

Noite após noite, ela voltava ao Steinway na sala de estar para enfrentar a monstruosa composição de Rachmaninoff - um campo minado de desafios técnicos e acordes abertos, difíceis de serem alcançados por mãos de tamanho médio, imbuídas de um anseio majestoso.
Os acordes fluíam dos dedos de AV, preenchendo o espaço onde sua mãe costumava se sentar no sofá cinza-claro, para oferecer alguma orientação musical ou simplesmente compartilhar um vídeo divertido do Instagram. Ela batia nas teclas com força, e as ondas sonoras reverberavam até o quarto vazio de Olivia, onde unicórnios, corujas e dinossauros de pelúcia ainda esperavam que ela voltasse do acampamento de patinação em Wichita.
Com o ar dos dias, a tragédia começou a se espalhar ao redor de AV - nos soluços da avó, nos preparativos para o velório, que seria realizado em meados de fevereiro, nas dezenas de pessoas que chegavam à casa trazendo refeições, nos cartões de condolências que se amontoavam na mesa de jantar.
Ela seguiu tocando.
Cravava as mãos nas teclas para extravasar a dor. Ao final daquela semana, quatro cordas tinham se rompido dentro da estrutura do piano.
“Foi a primeira vez que quebrei uma corda”, disse AV, tempos depois. “Por causa da força que eu estava aplicando”.
Terceiro movimento: Uma cascata de notas
O dia da competição caiu em um domingo do começo de fevereiro. A pequena sala de espetáculos da Escola de Música Levine fervilhava de familiares e jurados.
Balakerskaia apertava as mãos de AV, as duas lado a lado na plateia, esperando para entrar em cena.
Dois pianos estavam posicionados no meio do palco, diante de uma espessa cortina vermelha. Balakerskaia assumiu sua posição no piano ao fundo, para tocar as orquestrações do concerto.
AV ocupou seu lugar ao piano da frente, as pregas de sua longa saia preta iluminadas pelas luzes do palco. Seu pai estava na plateia e começou a gravar. Suas mãos tremiam.
Ela sorriu para as teclas e, em seguida, pousou os dedos no teclado.
Seus dedos deslizavam de um lado a outro, articulando cada som numa rápida cascata de notas.
A música transitou para uma retumbante marcha em estilo militar. Amplos intervalos entre os acordes criavam um som grandioso e arrebatador. À medida que a dinâmica da partitura aumentava, exigindo tons mais altos e agudos, a intensidade pulsante de AV também crescia.

O tom mudou uma vez mais, de pesado para delicado. Seus dedos se agitavam, tocando as notas agudas.
No meio da peça, uma pontada de tristeza surgiu entre as harmonias antes que a música irrompesse numa composição ainda maior e mais majestosa.
AV e Balakerskaia pararam, olharam uma para a outra e assentiram juntas quando tocaram um acorde vibrante em uníssono para arem aos segmentos finais. E, então, uma onda de aplausos veio quando AV sorriu para a plateia e fez uma reverência.
Depois que todos os alunos terminaram de tocar, os organizadores do evento anunciaram os dois vencedores do grande prêmio: um violoncelista, Andrew Chi, e uma pianista, Anne Valerie Ter.
Andrew Ter aplaudiu, tomado pela emoção. Amigos correram e cercaram AV. Por um instante, houve apenas felicidade e luz.
Quarto movimento: Adagio
Dois caixões brancos brilhavam na Catedral Ortodoxa de São Nicolau, no noroeste de Washington, em 14 de fevereiro, Dia dos Namorados. Olivia estava no da esquerda, Olesya no da direita.
Colegas de patinação, amigos e familiares vestidos de preto lotavam a igreja, raios de luz entravam pelas janelas altas e estreitas. Um pequeno grupo de homens em túnicas brancas realizava rituais, tocando sinos e ando velas enquanto o coral cantava.
Andrew Ter e Olga Kostygova, avó de AV, aproximaram-se dos caixões. AV, com um fino lenço cinza na cabeça, ficou para trás o quanto pôde, relutante em se aproximar.
Chegou a hora de uma procissão de enlutados marchar pelo espaço entre os caixões antes de serem levados para o local do sepultamento.
Sob o olhar do pai, ela avançou na fila e ocupou seu lugar entre os caixões enquanto o suave réquiem do coral flutuava desde o segundo andar.
Quando se deparou com as flores cor-de-rosa sobre o caixão da irmãzinha, seu corpo cedeu e ela se contorceu por um instante, como se tivesse levado um soco no estômago.
Sua irmãzinha. Um turbilhão de energia e brincadeira. Uma confidente e um conforto. Sua melhor amiga. Perdida para sempre.
Sua querida mãe. Sua maior incentivadora, defensora inabalável. Um modelo de resiliência, gentileza e generosidade. Perdida para sempre.
AV expirou e afundou a cabeça no arranjo de flores brancas em cima do caixão da mãe.
Um pequeno soluço. Pianíssimo.
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Quinto movimento: Allegro
No mês seguinte, ela participou do primeiro baile da escola.
Uma amiga da família, Lolita Gegeshidze, de 12 anos, arrumou seu cabelo para a ocasião.
“Confie no processo”, disse Lolita enquanto o vapor saía da chapinha com estampa de girafa em seu quarto em Highland, Maryland, SZA, Mitski e outros artistas populares tocando no alto-falante do celular.
Enquanto Lolita embelezava AV, as meninas beliscavam um pacote tamanho família de balas de goma azedas, conversavam sobre fofocas da internet mais ou menos relacionadas às Kardashian e riam alto.
“Você sabe o que é lobo occipital?”, perguntou Lolita a AV, do nada.
“Eu não saberia dizer”, respondeu AV. “Mas posso falar um monte sobre matemática”.
Elas conversaram sobre a competição. Lolita não estava lá, mas viu um vídeo no TikTok que já tinha acumulado 1,6 milhão de visualizações. Ela ficou maravilhada com o talento da amiga.
“A única coisa que sei tocar no piano são canções de Natal”, disse Lolita, enrolando as pontas dos longos cachos castanhos de AV.
Era Olivia quem costumava arrumar o cabelo de AV, quase sempre enfeitando-o com presilhas, além de brilhos nos pulsos e no pescoço.
“Ela gostava de tudo meio chique”, disse AV, rindo, com o aparelho prateado brilhando com elásticos azuis. “Ela deixava tudo muito especial”.
Logo depois, o afinador de pianos chegou à casa dos Ter. AV tinha quebrado mais três cordas.
Final: Música no silêncio
Chopin e Tchaikovsky trocaram de lugar com Rachmaninoff no cérebro de AV, oferecendo distrações bem-vindas.
Uma semana depois do baile, ela andava ansiosamente de um lado para o outro numa sala de ensaios no campus de Levine.
Brian Ganz, pianista premiado que já havia tocado com orquestras do mundo todo, estava dando uma aula-magna naquela noite, e AV iria se apresentar para ele.
Ganz chegou à sala por volta das sete da noite e assistiu à performance de AV para a Balada nº 3 de Chopin.
“Você toca muito bem”, disse Ganz depois que AV terminou a peça. “Sua maneira de tocar tem muita ternura, muito amor”.
Mas ele estava lá para ajudá-la a melhorar, então examinou a partitura em busca de disparidades entre as marcações na página e os sons que AV estava criando com o instrumento. Ela começou a peça pela segunda vez.
Enquanto Ganz a observava através dos óculos grossos apoiados no meio do nariz, surgiu um problema. Ele a interrompeu.
“Depois disso ele faz uma pausa”, disse Ganz sobre Chopin, apontando para a partitura com a borracha do lápis. “Acho que é importante observar isso. Permita que essa interessante ausência [de notas] seja ouvida”.
Ela assentiu e tocou mais algumas frases. Ele a interrompeu mais uma vez.
“O que temos aqui?”, perguntou Ganz, referindo-se a um símbolo na página. “Temos mais uma pausa, certo? Faça com que ela seja audível”.
AV tinha se acostumado a preencher os espaços vazios e silenciosos de sua vida desde o acidente. As atividades, os ensaios e as aulas eram um conforto. Era impossível saber o que poderia acontecer nos momentos de pausa. E ela não queria descobrir.
Mas Ganz ofereceu um contraponto.
“Vamos ouvir essa pausa”, disse ele, sorrindo. “É nos silêncios que a maior parte da música acontece”.
A família alcançou um novo marco em abril: sua primeira grande viagem desde o acidente. Os Ter iam para a Flórida todos os anos, mas nunca sem Olesya e Olivia.
Viajando pelo litoral, AV, seu pai e seu tio cantaram músicas no carro e pararam no drive-thru de um McDonald’s, contaram mais tarde.
A dissonância entre a vida antiga e a nova começou a se transformar numa espécie de harmonia.
Em South Beach, na região de Miami, AV ficou na água do mar, mexendo os dedos dos pés na areia, com o rosto virado para o sol.
Em um universo alternativo, sua mãe e irmã estariam flutuando ao seu lado, disse ela.
Este momento era diferente. Era mais silencioso. As risadas de Olivia deram lugar ao grasnar de uma gaivota. Em vez da voz de Olesya, o suave som das ondas quebrando na praia. A luz do sol aquecia sua pele. Por um instante, houve paz. Mesmo sem elas.
/ TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU