Em discurso lido nesta terça-feira, 24, no “Fórum Liberdade de Expressão - 150 anos em defesa da liberdade e da democracia”, o ministro Supremo Tribunal Federal (STF) Edson Fachin defendeu a regulação das redes sociais e destacou o papel da imprensa livre na defesa da democracia. Para ele, a liberdade de expressão não pode servir para aniquilar a própria liberdade.

O encontro faz parte do ciclo de eventos em comemoração aos 150 anos do Estadão. Veja abaixo a integra do discurso de Fachin:
Estado de direito democrático e liberdade de expressão
Saúdo a todos que se fazem presentes neste Fórum a respeito da Liberdade de Expressão. Peço licença para fazer a saudação ao Jornal Estadão em seus 150 (cento e cinquenta anos) de atividades, bem assim à organização do evento e aos integrantes dos três painéis desta tarde.
Senhoras e Senhores,
Estava a reler alguns trechos de Philippe Lançon n’O retalho quando recebi o convite que chegou no meio do eco das palavras de ordem “Je suis Charlie”. Dez anos faz desde aquela manhã de 7 de janeiro, e nesta última década oscilamos entre violências, indiferenças e rejeições ao convívio no dissenso. A complexidade dessa estação é interpelante.
Estes últimos anos parecem ter decretado a morte do ‘senso comum democraticamente esclarecido’ – para utilizar a conhecida expressão de Jürgen Habermas.
Compreender esse contexto atual sugere diálogo entre conhecimento e experiência, isto é, requer ter vivenciado, escutado e testado. Por isso, aceitei o convite, a fim de refletirmos.
Ainda que sejam cada vez mais improváveis, é fundamental construir pontes entre dissensos e diferenças. A contemporaneidade nos interpela, nos convoca, nos desafia a (se possível) resolver problemas complexos, o que requer a construção de pontes, não de muros, conforme a feliz imagem descrita pelo Papa Francisco.
Fachin no Estadão: ministro alerta sobre ameaças à liberdade de expressão
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As ideias que apresento tem por fio condutor a compreensão da liberdade de expressão como autonomia e livre circulação das ideias, e estão demarcadas em três momentos. No primeiro, as mudanças tecnológicas estruturais e a liberdade de expressão; no segundo, o papel de instituições de conhecimento. No terceiro, exporei o papel do Poder Judiciário.
Comecemos pela liberdade de expressão em tempos interpelantes.
É quase um truísmo dizer que amos por muitas mudanças estruturais e que afetam a todos e todas, mas de formas distintas. Os tempos polifônicos que vivemos são desiguais.
Cite-se a Crise Climática como trágico exemplo, objeto da Encíclica Laudato Si’: sobre o cuidado da casa comum. Ela afeta a toda a humanidade. Sem embargo de todos habitarmos esse planeta e presenciarmos os efeitos cotidianos do aquecimento global, é sabido que o impacto da Crise Climática é sentido de forma diversa e bastante díspar. Ela tem produzido refugiados, deslocamentos internos e é ainda mais rigorosa com aqueles que encarnam outras vulnerabilidades.
Impende ouvir o lamento da terra. Diante desse ‘grande desatino’ (para utilizar a expressão de Amitav Ghosh), as medidas para o seu enfrentamento são mais que urgentes.
Não obstante, o evento de hoje aqui chama atenção para outra mudança que nos desassossega cotidianamente.
São as vertiginosas metamorfoses tecnológicas, as quais envolvem as transformações na ambiência da internet com a ascensão das denominadas Big Techs e das redes sociais, bem como o desenvolvimento e a popularização da Inteligência Artificial Generativa. Tais câmbios técnicos e culturais também impactam a todos e todas, mas invariavelmente de forma desigual.
Elas contrariam uma visão idílica a respeito do funcionamento das novas tecnologias da informação e de inovação, sobretudo da internet. Espraiou-se a percepção de que a internet é uma grande ágora, uma praça digital onde todas e todos podem falar igualmente e ao mesmo tempo e onde todos serão ouvidos.
Impende evitar generalizações, porquanto a demonização e bem assim a divinização podem ser más conselheiras. Comedimento e cautela são caminhos melhores.
É certo que a incorporação e o uso dessas tecnologias são constitutivos do cotidiano das famílias e instituições brasileiras. É notório, por exemplo no Brasil, o uso do Pix, acelerando ainda mais o tráfego de bens e serviços, assim como a ampla disseminação de redes sociais e de aplicativos de mensagens, alçando o Brasil a um dos líderes mundiais em números de usuários dessas plataformas, perdendo, em 2023, somente para a Índia e a Indonésia. Somos o segundo país em tempo de uso de telas e de redes sociais.
O fato de que o uso de tais plataformas, especialmente das redes sociais, é amplamente compartilhado pela maioria da população não significa que a forma de manejo e uso é idêntica. Pelo contrário, inclusive. Estudos de antropologia, levado a efeito por Juliano Spyer, demonstram que no Brasil, quem posta, o que posta e como posta é distinto do que pode ser considerado por muitos como o “uso normal” da plataforma.
Tal constatação é relevante para compreender as mudanças estruturais que essa revolução opera na compreensão do funcionamento da esfera pública. Ela demonstra como as redes sociais podem ter espacialidades e temporalidades diversas, isto é, não há nada de linear, de cronológico, ao rolar o feed de uma rede social.
Isso é agravado pelo fato de que a construção de perfis personalizados pelos algoritmos apresenta o que supostamente o usuário mais quer ver, por conta do o aos seus dados, gostos e desgostos.
São reforçados vieses, propensões, e, inclusive, preconceitos. Ao invés de alargar horizontes, dado o amplo o à informação e a possibilidade de interação com pessoas distintas, o que costuma ocorrer é o reforço de perspectivas estreitas, enviesadas, e de ideias previamente concebidas, agora reforçadas por curtidas e compartilhamentos.
Igualmente, temos observado o impacto das redes sociais sobre a sociabilidade de crianças e adolescentes, tanto no que diz respeito ao aumento do tempo de uso de telas na primeira infância, o que tende a comprometer o desenvolvimento cognitivo e da linguagem, quanto ao consumo de conteúdos com discurso de ódio contra minorias vulnerabilizadas e mesmo o endosso a práticas violentas offline, como ataques a escolas, violência sexual contra meninas e mulheres, e outras mazelas.
Em razão disso, muito oportunamente, o Congresso Nacional aprovou e o presidente da República sancionou a Lei 15.100 de 2025, que restringe o uso, pelos estudantes, de celulares e outros aparelhos eletrônicos portáteis nos estabelecimentos públicos e privados de ensino da educação básica, visando a proteger a saúde mental e física de crianças e adolescentes.
Essa descrição contrasta, com a esfera pública descrita por Hannah Arendt, em sua obra, de 1958, e da obra de Jürgen Habermas, ‘Mudança Estrutural da Esfera Pública’, de 1962. Em tais obras, apesar de suas diferenças, era possível verificar a descrição de um espaço de igualdade entre seres humanos, onde as pessoas atuavam por meio da palavra e compartilhavam um espaço comum, pois debatiam os mesmos fatos.
O feed do usuário da plataforma não é uma fotografia ou um vídeo do que se discute na esfera pública naquele momento. Em razão dos filtros algorítmicos, cada perfil é customizado, verdadeiro trabalho tailor made, para cada usuário. Portanto, com o avanço da plataformização da internet e do desenvolvimento exponencial dos algoritmos que promovem filtro das informações que engendram compreensões muito distintas inclusive a respeito dos mesmos fatos, houve a ampliação de câmaras de eco, e deram combustão aos extremismos.
Confrontado com um fato inequívoco, o sujeito insular extremado escolhe simplesmente não acreditar. A razão é substituída pela crença individual desse renovado superego absoluto.
Evidentemente, isso não se dá sem contrapartidas, pois os usuários fornecem dados a respeito de suas vidas e gostos, verdadeira matéria bruta para a produção dos serviços na era da ‘economia da atenção’.
Essa dinâmica entre usuário e prestador de serviço diverge da estrutura fundante da sociedade aberta de mercado: a separação entre a titularidade dos bens de produção e o uso dos meios. Conforme aponta a professora da UNB, Ana Frazão, essa dinâmica tem levado autores a afirmar que o usuário é ao mesmo tempo um produtor e consumidor, o que se designa como “prosumidor”, a depender de quantos dados são ‘minerados’ para que as empresas possam desenvolver os seus produtos.
É nesse contexto, também, que tem se defendido, sobretudo na internet, que a liberdade de expressão é um direito tão absoluto que a impediria de sofrer quaisquer restrições, mesmo legítimas. Reificou-se a liberdade, virou coisa e mercadoria.
Se analisarmos com atenção, verificaremos que a concepção a respeito da liberdade de expressão nos Estados Unidos possui balizas desenvolvidas pela Suprema Corte, como a vedação ao uso da palavra “FOGO!” dentro de um cinema lotado, quando não há fogo algum.
Pretende-se difundir, sobretudo via redes sociais, a noção de que a liberdade de expressão permite exprimir, inclusive, a expressão do aniquilamento da liberdade.
Não nos parece que assim deve ser: a liberdade deve proteger a liberdade, a democracia deve proteger a democracia.
Esta linha de pensamento possui respaldo na ordem constitucional brasileira, tampouco estão de acordo com os tratados internacionais de direitos humanos que a República Federativa do Brasil celebrou, aprovados pelo mesmo Congresso Nacional que hoje é interpelado a discutir a regulamentação de tais plataformas e, por consequência, a criar legítimos mecanismos de contenção democrática dos impactos danosos das fake news.
Os tempos interpelantes abrem desafios e possibilidades, cumpre avançar, mas não há liberdades sem limites democráticos ou responsabilidades legítimas.
A essa atuação política, soma-se a atuação cujo modelo de negócios acima descrito lucra com esse estado de coisas e a defesa da liberdade sem limites. Alerta Evgeny Morozov:
“(...) deixa de ser relevante se as mensagens são verdadeiras ou falsas. Tudo o que importa é se elas viralizam (ou seja, se geram número recorde de cliques e curtidas) (...) Verdade é o que gera visualizações.”
Desenvolve-se o populismo digital autoritário, cujo tsunami está prestes a afogar as democracias ocidentais e as clássicas conquistas das liberdades: “o ódio, infelizmente, vende bem mais que a solidariedade.”
Como sabemos, mesmo os canais tradicionais da mídia impressa e da TV sofrem seus efeitos.
É evidente a complexidade que se impõe. Cabe não reduzir o quão complexo é esse cenário. Contudo, nada pode servir de justificativa ou de salvo conduto ao pessimismo ou a tecnofobia. Demanda-se a atuação de distintas instituições, autoridades públicas, privadas e da sociedade civil.
Para isso, entendo que é possível delinear como se pode dar a atuação de algumas instituições de conhecimento que funcionem como salvaguardas da democracia constitucional e da liberdade de expressão. emos a elas.
Para que a liberdade de expressão seja expressão da autonomia, da democracia e da livre circulação das ideais, requer-se que as instituições, além do Poder Judiciário, funcionem plenamente.
A essas instituições privadas e públicas a professora de direito constitucional de Harvard, Vicki Jackson designou como: “instituições de conhecimento”, e delas destaco: órgão de estatísticas e dados oficiais; a Universidade e a imprensa livre, bibliotecas e museus. O que elas têm em comum, é, de um lado, o propósito de disseminar conhecimento sobre o mundo, e, do outro, a aplicação de padrões (standards) para a busca do conhecimento e para a sua avaliação. De modo que, segundo a autora, para atingir tal finalidade essas instituições e quem trabalha com elas precisam usufruir de proteção jurídica adequada para exercer suas funções. É imprescindível uma rede de proteção institucional dessas instituições, sem mitigar, por certo, seus eventuais erros ou desacertos.
É possível verificar a pertinência do argumento de Vicki Jackson publicado em 2021, para o presente.
No Brasil, por exemplo, a ausência de conclusão do Censo de 2022 pelo IBGE foi suspensa, pois acarretaria prejuízos a municípios quanto a repartição de receitas do FPM – Fundo de Participação dos Municípios. Como se sabe, sem dados precisos não é possível desenvolver políticas públicas eficientes, o que impede o controle social e eleitoral, assim como o controle institucional.
Instituições como bibliotecas e museus permitem salvaguardar a memória coletiva e promover atividades de cidadania e autonomia para adolescentes e jovens de todas as idades que em tais espaços aprendem a elaborar e a reelaborar tradições, conhecimentos e experiências estéticas. Exposições, obras e livros enriquecem a esfera pública inundando-a com contribuições de modo a pluralizar as percepções e os modos de vida.
Em relação às Universidades, há outros impactos que, no plano social, envolvem o desenvolvimento científico e tecnológico do país, e no plano social produz significativa mobilidade social. A respeito dela a Constituição da República prevê a autonomia universitária, bem como a liberdade acadêmica.
No Brasil e alhures muitas dessas instituições sofreram e sofrem com ataques diretos, ou com táticas indiretas de enfraquecê-las, seja pela redução do financiamento público de tais atividades, seja na tentativa de determinados grupos de desacreditá-las.
No caso da imprensa, há alguns pontos que agravam a situação. Conforme descrito por Habermas (2022) e igualmente aplicável ao Brasil, houve nos últimos, uma redução substancial dos números de leitores da imprensa, que sofreu com a mudança do modelo de negócios e pela forma como se veiculam informações nas plataformas, especialmente, nas redes sociais.
A isso soma-se a disputa pela atenção com as plataformas que reduz substancialmente os estímulos para reflexões e debates mais aprofundados. A velocidade e a demanda por novas notícias também desincentivam a investigação de temas complexos.
A despeito das enormes distâncias tecnológicas, ainda são pertinentes as palavras de Rui Barbosa, escritas em 1920, a respeito da função da imprensa:
“A imprensa é a vista da nação. Por ela é que a nação acompanha o que a ao perto e ao longe, enxerga o que lhe malfazem, devassa o que lhe ocultam e tramam, colhe o que lhe sonegam, ou roubam, percebe onde lhe alveja, ou nodoam, mede o que lhe cerceiam, ou destroem, vela pelo que lhe interessa, e se acautela do que a ameaça.”
Reitero que a imprensa, portanto, tem papel fundamental para levar ao conhecimento do público os fatos, o que é essencial para informar o eleitor, os órgãos de controle e ainda contribuir para o respeito do Estado de direito. Além disso, a proteção dada à imprensa inclui a relevante função de investigar para produzir as informações, reportagens e escrutínios. Precisamente, nesse sentido, é a advertência do também jornalista Gabriel García Márquez para:
“Ter sempre presente algo que parece esquecido: que a investigação não é uma especialidade, um gênero do ofício, mas que todo jornalismo tem que ser investigativo por definição.”
Defender a democracia constitucional brasileira exige proteger as condições de investigação jornalística. Em tempos de bolhas e de algoritmos, a imprensa continua a ser a visão da nação. Essa proteção especial é assegurada pela Constituição da República e foi reforçada por decisões recentes do Supremo Tribunal Federal, a respeito do assédio judicial em face de jornalistas (ADIs 6792 e 7055) e dos limites para a excepcional responsabilização de empresas jornalísticas que divulgarem acusações falsas (RE 1.075.412, tema 995).
O STF também tem atuado para proteger um direito fundamental não apenas dos jornalistas, mas de toda a sociedade: o direito ao sigilo da fonte, protegido constitucionalmente. Ao longo dos anos, o Tribunal tem determinado o trancamento de investigações e ações penais que buscam criminalizar jornalistas que se recusam a revelar suas fontes. Com isso, tem protegido o direito individual do profissional a salvaguardar informações necessárias ao desenvolvimento de seu trabalho, um direito, é importante lembrar, de expressão coletiva, uma vez que, em última análise, garante à sociedade ter o a informações de interesse público que não chegariam ao seu conhecimento caso tal violação fosse chancelada e estimulada.
Encaminhando-me para o encerramento, dedicarei algumas palavras sobre atuação do Poder Judiciário.
Relembro que o mundo em que vivemos está muito longe daquele de John Stuart Mill, quando publicou On Liberty em 1858, ou de Rui Barbosa no início do século XX, ou mesmo de Hannah Arendt. Tais transformações são visíveis. Não obstante, há lições que merecem ser renovadas à luz do tempo presente e da tecnologia que nos circunda.
É indispensável recordar o básico.
A compreensão de que a liberdade de expressão pode fomentar a autonomia, o desenvolvimento pessoal e social, como queria John Stuart Mill, são atuais relevantes. Assim como a noção de que a liberdade de expressão resguarda e fomenta a democracia e o autogoverno coletivo por meio de debates públicos e robustos, precisa ser conjugada com a ambiência digital. As plataformas formatam o conteúdo, limitando-o às suas possibilidades, o que gera efeitos na produção e na compreensão do que é consumido.
Ao Poder Judiciário, como se sabe, cabe interpretar e aplicar o direito. Conforme mencionei, o Supremo Tribunal Federal se alinha à jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos que tem procurado proteger tais direitos.
As críticas, ainda que duras, a agentes públicos são partes constitutivas da democracia e são imprescindíveis para a construção do Estado democrático de direito.
O que ocorre, tanto com o Poder Judiciário, como a imprensa, é “a dupla estratégia de disseminação de fake news”, como bem observou Habermas. Articula-se contra instâncias que não reproduzem os vieses e bolhas ou que sancionam a violação do direito. No caso do Poder Judiciário, procura-se apequená-lo. Eventuais erros quando não são apontados para o aprimoramento e fortalecimento das instituições, mas sim superlativados para erodir a sua autoridade, ao fim e ao cabo, almeja-se implodir a institucionalidade, diluir o Estado, as instituições públicas e privadas, e reinstalar-se um novo hobbesiano ‘estado da natureza’.
Não há bula pronta com a vacina para esse vírus que supostamente espraia ordem almejando, a rigor, que não haja ordem social alguma, que defende um cenário em que não haja regra ou regulamento algum, e que almeja a concentração de poder em um só ator, sem limites e sem espaço para que pessoas, sociedade e Estado possam propor legítima regulação e parcimônia democrática em nome do bem comum.
Há caminhos a principiar. Nós, juízes, também temos deveres a cumprir. Devemos cada um e cada uma, em seus respectivos campos, apresentar o respectivo comportamento como contraprova do discurso. Não vivemos graças à justiça e sim pela justiça. Ao Direito o que é do Direito, à Política o que é da Política.
Sem embargo, também é certo que a Constituição Federal no Brasil se tornou instrumento cotidiano de disputa de sentidos em todos os segmentos da sociedade com os seus consensos e dissensos. Daí a relevância de imprensa livre, porquanto a liberdade de expressão que denuncia, aponta escândalos, controverte decisões, coopera, enfim, em todos os sentidos com uma sociedade verdadeiramente sem preconceitos, ou como se traduz constitucionalmente, livre, justa e solidária.
As questões do Direito, da justiça dos julgamentos e das decisões judiciais são, portanto, inevitavelmente permeadas por controvérsias. E é bom que assim seja. A disputa de sentidos integra a coleção aberta de uma sociedade plural.
Essa é uma questão que interessa a toda sociedade. São imprescindíveis mecanismos de ability no bom funcionamento de todas as instituições. Trata-se de uma demanda da justiça brasileira como um todo. É, no fundo, uma exigência de mais eficiência, de mais qualidade, e, portanto, de limites.
Isso, por certo, não desonera as próprias instituições de corrigirem os seus erros, nem lhes outorga leniência para agirem como bem aprouverem. “No duro ofício do viver”, disse Saramago perante a Academia Sueca, na Estocolmo de 1998, o escavar em direção às próprias raízes ensina “a honradez elementar de reconhecer e acatar, sem ressentimento nem frustração, os (...) próprios limites”.
As mazelas não são poucas e devem ser arrostadas. Nada obstante, a evaporação dos limites traduz-se em dificuldade para garantir respeito às instituições, quer públicas, quer da sociedade, como a família e a escola.
Não há sociedade aberta sem instituições preservadas. Na democracia, a soberania popular e a sociedade precisam ter o lugar central para criar possibilidades e impor limites. Num Estado autoritário, abdica-se desse poder que é transferido para fora do corpo social.
O desafio de hoje parece-me ser este: resgatar a tradição republicana e impessoal de construção de instituições, o que impõe uma agenda republicana e uma ordem democrática contida na racionalidade.
Na ‘colmeia digital’ que cobre o planeta (para usar a expressão de Giuliano Da Empoli), a realidade não é nem pode ser peça de ficção.
Retomo, para concluir, a obra O retalho, de Philippe Lançon, por mim referida ao início. Os fatos, escreveu ele, devem ser a bagagem a ser levada sempre consigo, os fatos devem recuperar o seu mandato e se imporem a todo devaneio ou narrativa. Para isso, acrescento, é necessário tomar como premissa o método da memória aberta aos fatos, à verificação de comportamentos objetivos, e não a memória seletiva e isolante.
Quase ao final do livro, lá pela página 445, Lançon se refere aos vizinhos e amigos da infância, bem assim às pessoas que no hospital o atenderam, como pessoas de boa vontade, pessoas “que não querem uma sociedade em que o sono da razão produz monstros”; ao se perguntar sobre o que realmente querem, ele mesmo respondeu: “eles gostariam, sem dúvida, de um contrato social, eficaz, equitativo e civilizado”, e olhando para seu país, em tom de desesperança acrescentou: “não há mais ninguém na França para (...) colocá-lo em prática”.
Tomada de empréstimo a pergunta de Lançon para o nosso país, ela nos interpela: e haveria quem realmente queira fazê-lo no Brasil?
O futuro sabe à resposta, e nesse porvir espero que estejamos movidos a esperanças. Não deixemos que os extremos removam a sutil película civilizatória que ainda nos veste de alguma humanidade.
Muito obrigado pela vossa atenção.